23 de dezembro de 2012

Reconsider

Saio da loja tarde, está tudo fechado, parece que só nós e as vitaminas é que estamos abertos, que raio de dia, penso para mim, se fumasse era agora que ajeitava o cachecol e acendia o cigarro, penso nela lá no meio do oceano, penso na visita da minha filha, soube-me a tanto, a tão pouco, aquela sensação de viver entre o tudo e o nada, sou frágil e nada me atinge, tantos clientes em tão pouco tempo e em tão pouco espaço, perguntas que não lembram ao menino jesus, a noite está fria e eu também, o mendigo da porta da igreja despede-se com um boa noite senhor, estou mais habituado ao bom dia senhor para espanto de quem, por algum acaso, desce a rua comigo, mas o mais estranho estava para vir, ao fazer a esquina para a rua do alecrim dou de caras com o poeta-pintor, personagem habitual do chiado, meu arqui-inimigo de lançamentos e eventos finos da livraria, ele que tenta sempre entrar no nosso espaço para vender gravuras do Pessoa e poemas de sua própria autoria, da última vez que o expulsei de um lançamento, estava eu passados uns minutos à conversa com o ceo da empresa, ele aparece e vocifera, naquela sua maneira de falar quase imperceptível para os ouvidos destreinados, com aquele seu jeito poético-pictoresco de comer metade das sílabas, eu escrevi um livro de prosa prosa-poética poesia e pintura e vou lançá-lo aqui e vou expulsar-te a ti como tu me escorraças a mim, e o meu ceo sem perceber nada, e eu a encolher os ombros e a exclamar é justo, é justo, já no outro dia vi-o sentado à porta do belcanto a falar com uma miúdinha que parecia a maddie, ora aí está um cenário bizarro, então lá o encontrei na esquina e ele, pela primeira vez, veio apertar-me a mão e perguntar-me se podia descer comigo a rua, ia para o atelier antes de partir pela linha de sintra para os lados da amadora, e eu acedi, afinal de contas, é natal, estamos longe do nosso campo de batalha natural, então o poeta-pintor confidenciava-me que vendeu duzentos euros em quatro horas, não está mau, confirmei eu, ele queixava-se de que esteve quatro dias sem vender, é a crise, pudera, está mau para todos, disse-me que até cheques aceitava, cuidado, adverti eu, ele encolheu os ombros, tenho de arriscar, saiu-lhe com toda a sinceridade enquanto deixava sair a última bola de fundo que tinha guardada nos pulmões, despediu-se com um bom natal, apertou-me a mão novamente, virou a esquina e desaparecemos da vista um do outro, há comboios e camas vazias à espera, amanhã é um novo dia, amanhã.

2 comentários:

SJ disse...

E ainda não estás farto da Pantera cor-de-rosa?

Ricardo disse...

Farto da Pantera? Eu gostava de ter léxico e qualidade literária para te dizer o que acho da Pantera a puta da tarde toda a tocar à porta.