17 de setembro de 2012

Gold guns girls

Estou em processo de habituação à brilhante e maravilhosa ideia de me terem trocado as folgas, na primeira semana não parecia tão mau, estava sozinho, a Catarina ainda passeava por aí com a mãe, não fez outra coisa o verão todo, a criança, e a primeira segunda-feira de folga passou-se bem, era uma espécie de domingo mas em pior, mas hoje, hoje, a ter de acordar às sete da manhã numa das folgas, a receber doze chamadas da loja, a ter que levar a Catarina à escola e ter que pensar no que fazer com o tempo até ela sair, voltar a casa nem pensar, não ganho para a gasolina, vou deambular por Cascais, desfazer-me por aí, assim o fiz, livro na mão, deixa-me lá ouvir Metric como deve ser, que ele há coisas que passam por nós, até mais do que uma vez, e nós não damos por elas, com Metric foi assim, tempo perdido é algo que não existe em música portanto agora é tão boa altura como outra qualquer, e comecei por visitar duas livrarias, eu que sou suspeito nisto, fiquei algo desiludido, a Bulhosa tinha, atenção, meia estante de autores portugueses, eu que estou habituado às minhas quatro, terrivelmente mais altas, igualmente largas, tinham Saramago e pouco mais, dói-me a alma ver um sítio assim, então desisti e fui-me embora, rumo à Galileu, saudei a livraria fechada onde já fui relativamente feliz, onde dei os primeiros passos a tomar conta de uma loja que vende livros, sim, porque tomar conta de uma livraria é uma coisa algo recente, então entro na Galileu, sinto-me mais em casa, embora confesso que me faz alguma confusão aquela atitude um bocado autista em relação ao mercado editorial, um elitismo ridículo, e depois têm uma primeira edição do Pena Capital, mas era trinta euros, e eu a ver o livro que trazia na mão numa estante, mas em primeira edição, de setenta e tal, quer me parecer, e custava vinte cinco euros, bastante mais do que me custaria o meu, se o comprasse claro está, que isto de trabalhar com os livros tem de ter algo de bom, e saí de lá com as mãos a abanar, desci a rua, acenei ao Santini, nunca é demasiado cedo para um gelado mas havia muito para andar, fui até à praia, crescemos ali, eu e o meu amor por aquele terra, naquela areia que recordo morna, muito gostava eu de saltar lá de cima, sempre com medo que o meu avô me obrigasse a ir dar uma volta no barco dos amigos pescadores, eu a ver o pontão ser construído, a sonhar mergulhar de lá, acho que foi algo que ficou na terra dos sonhos, não tenho memória de alguma vez o ter feito, por falar em memória, um coração apenas aguenta uma certa dose de nostalgia, decidi continuar, subi pelas escadinhas, a tocar nos corrimões, nas paredes de pedras antigas, para sentir não me basta ver, tenho de tocar, o frio daquela pedra aquecia-me, sinto-me eu, sinto-me em casa naquelas ruazinhas, com o mar a espreitar sem ser convidado, e pelo caminho ia escolhendo sítios para me sentar e ler um pouco, uma busca inglória pela perfeição literária, e assim iam-se sucedendo os passos e a memória, pergunto-me porque é que nunca fui muitas vezes à praia da Rainha, não encontro resposta, continuo o passeio, ajudo um homem a pôr uma caixa na traseira de um camião, o amigo trabalha nas mudanças, perguntou ele, livros, respondi eu, pensei que os livros eram para ler, retorquiu, sim, mas há que carregá-los primeiro, bom dia e até à próxima que o capítulo está a acabar e preciso de um novo sítio para me sentar, claro que ela também está por lá, aquela memória, continuei pelo paredão, desviando-me das tias ao telefone enquanto passeavam, já com cor e textura de sofá de cabedal, que medo, passo pelo túnel do antigo Estoril Sol, está bastante mais largo, com azulejos de um gajo conhecido, que merda não me lembro do pintor, faço um exercício de memória e penso na prateleira de pintores portugueses na livraria, Nadir Afonso, foi rápido, não me safei mal, pensei em tanta coisa para escrever, tanta coisa que senti, mas varreu-se me quase tudo, às vezes acho que é melhor assim, cada coisa no seu sítio, sentir é no presente, no passado já não vale a pena, e quando dou por mim já é hora de apanhar a Catarina na escola, ela fica feliz como só as crianças sabem ficar com estas coisas, vamos comer um cachorro, depois é hora do banho, trabalhos de casa, senhor dos anéis, jantar, lavar os dentes, cama, é bom partilhar estas coisas, sim, tenho saudade de quando era assim todos os dias, e agora é o à custa do sábado, dia de passeios e travessuras por excelência, não morre ninguém, mas, não é a mesma coisa, nunca nada é, no fundo, e isto é como tudo, vive-se agora porque amanhã pode ser pior, e agora, com ela aqui, estou bem, cansado, mas bem, agora é só fechar a merda da porta da rua para ver se não acordo com o cão a ladrar como se o mundo estivesse para terminar e ter uma boa noite de sono.

2 comentários:

Joana disse...

Fiquei cansada só de ler, mas gostei muito dessa catadupa de sentimentos e pensamentos...
Uma leitora silenciosa (de livros e deste teu "livro").

Ricardo disse...

Leitoras são sempre bem vindas, silenciosas ou não.