25 de setembro de 2014

Lu

Arrastaram-me para casa da minha mãe para receber uns sofás: a minha avó já vai com noventa e dois anos, coração fraquinho da perda recente do companheiro de uma vida, com uma audição terrível e, calculo eu, pouco dada a pagamentos em multibancos portáteis e coisas que tais. Lá fui eu, era para receber uns sofás mas acabei por redecorar a sala da minha mãe, tipo querido mudei a casa mas sem as teorias esbracejantes do Gustavo. Por motivos de razões e em virtudes de compromissos tardios algures pela vila de Cascais, durante a noite, acabei por ficar lá a tarde toda. Parece, cada vez mais, que serão as últimas tardes com a pessoa que me criou até ir para uma creche, aos dois, três anos. Ela diz constantemente que, se soubesse o que sabe hoje, teria-me estrafegado o pescoço. Não percebo bem porquê, mas a reacção das pessoas é geralmente acenar com a cabeça e dizer "hm, hm", num tom compreensivo, algo que eu compreendo ainda menos. Ela já não tem qualquer filtro: diz as coisas às pessoas, às vezes coisas mázinhas, às vezes embaraçosas ("tens o cabelo assim como o William de Inglaterra"), com a maior das naturalidades. Contou-me que ficava nervosa de ficar comigo em bebé porque sofre dos nervos e porque eu tinha muitas convulsões. Pensei que era por ser um bebé extremamente giro, diz que até me confundiam com uma menina. Isto aparentemente é um elogio. Ela vai puxando pela memória e, sem dificuldade nenhuma, vai contando histórias da minha mãe, do meu tio e do meu avô, histórias de filhos perdidos e dos primeiros tempos de casada, quando, a sortuda, morava na rua do Alecrim. E acaba por ser incrível perceber que uma pessoa que se enerva, desde que a conheço, com as mais pequenas coisas, que tudo e o seu contrário lhe fazem confusão, esta pessoa passou por certas coisas e descreve-as com uma segurança e uma força que lhe fogem da voz quando fala normalmente. Resta-me aproveitar e ouvir.

Sem comentários: