11 de setembro de 2014

Granta, aqui vou eu III

África. 
A voz saiu dela como um idoso desorientado por uma porta de um lar aberta por esquecimento de uma funcionária que estava preocupada em não perder a reportagem CMTV sobre os homens do fato que burlavam idosos no Portugal profundo. 
África, confirmou ele. África. 
Que raio de tema para o número três da Granta, o que esta gente se havia de lembrar, pensou. Ajeitou-se na secretária, alinhou e arrumou os papéis pela quarta vez durante a manhã, abriu e fechou as gavetas, alt e tab entre folhas de excel, o mail da empresa e A Bola, nada de novo, o Jonas ainda não tinha assinado, decidiu então desligar o computador. 
Não sabia grande coisa sobre África. Pensou em fazer umas perguntas ao colega que tinha ido de férias para Moçambique, o facto de não ter paciência para ele fez com que rapidamente desistisse da ideia. Não sabia muito, mas sabia que a moda agora era o ébola. E o medo que ele tinha de apanhar o ébola: ainda uns dias antes, espirrou duas vezes e ligou para a linha saúde vinte e quatro para saber se tinha apanhado o ébola. Não achava piada nenhuma à doença, aliás, nunca tinha ouvido nada com tão pouca piada, o que, para alguém que tinha visto os três primeiros episódios do Sal, quer dizer muito. Era costume ligar à mãe, durante a noite, a dizer coisas como tossi muito ao adormecer, achas que tenho o ébola? Queria muito escrever sobre África, mas tinha medo de ficar doente. 
Tens a certeza, Teresinha, que o tema é África? Eu, Poder, Casa, África? É este o encandeamento dos temas? Parece um telegrama do Savimbi a dizer que hoje vai jantar a casa depois de uma visita à Europa.
Ela encolheu os ombros, eu não escolho as regras, disse, apenas estou a transmitir-te o tema da revista, se quiseres escreves, se não quiseres não escreves. 
Levantou-se da secretária, os colegas absortos nos seus qualquer coisa Saga da moda do facebook, Africa será, então, disse em voz alta, perante a indiferença de todos, Teresinha incluída. Fechou a pasta, bateu os calcanhares, disse meus senhores, bruxa, até um dia, e saiu pela porta, deixando Teresinha a questionar-se se o bruxa era para ela. 
Estas chuvas em setembro não tinham vindo a calhar, uma pessoa não consegue escrever sobre África com temperaturas abaixo dos trinta e cinco graus centígrados. Pensou passar numa discoteca e comprar um disco do Bonga, para ouvir como inspiração, mas o melhor que conseguiu arranjar foi o Lisboa Mulata. Não era africano o suficiente. Depois pensou em ler Agualusa, mas o que o safou foi o facto de se lembrar que gosta muito de boa literatura então desistiu. Uma pessoa faz sacrifícios por um bom texto mas também há limites. 
Chegou a casa, o continente negro na mente e no coração. Ligou o portátil, pôs o disco a tocar e disse para si mesmo, África, prepara-te, mete lá o ébola e essas coisas de lado, que aí vou eu. Ia batendo o pé ao ritmo da música, o cursor a piscar no ecrã, já tinha o título escrito. Releu o título, soa-me bem, bate lá isto, Mia Couto, disse, enquanto continuava a bater com o pé. 
Quando se preparava para o triunfal primeiro parágrafo, lembrou-se do professor Bambo e de como este daria um belo vilão para uma história de capa e espada passada nas profundezas africanas, onde uma protagonista loira e bem apessoada estaria feita refém de Bambo e dos seus esbilros, enquanto estes disparavam o ébola pelas suas fisgas feitas de ossos de dinossauro e coisas do género. Era o terror. Até que o herói, munido de instrumentos esterilizados e ostentando um daqueles fatos amarelos anti-nojo, a salvava das garras do temível Bambo, antes que este previsse que ela iria ser traída pelo marido e que já era vitima de mau-olhado pela vizinha do segundo esquerdo, sim, que ela nunca a enganou, bem que ela estava sempre a lavar as escadas quando ela passava, com os saltos meio tortos de tanto dançar em cima de uma coluna no Urban, bem que ela sabia que ela lhe rogava pragas em nome da nossa senhora da Venda do Pinheiro, ela nunca a tinha enganado, por isso é que ela se sentia enjoada quando via o Dança com as Estrelas, não era nada dos gritos da Cristina Ferreira como dizia a melhor amiga pelo whatsapp, era por isso que ela tinha dificuldade em arranjar namorado e de certeza, certezinha, que foi por isso que o Bambo a tinha raptado numa noite de lua cheia ali ao pé do largo do Carmo, assim como quem vai para aquela loja de produtos saudáveis ou lá o que raio é aquilo, que uma loja que não venda coca-cola não merece o espaço imobiliário que ocupa. 
Distraído pelos seus pensamentos, ignorou o telefone que tocava insistentemente. Bruxa, podia ler-se no ecrã. Estava na altura de mudar o disco de lado, pode ser que o segundo lado seja mais africano e eu consiga a inspiração necessária, pensou. Mudou o disco de lado e voltou a sentar-se, deixando o olhar demorar-se na janela: os prédios ao longe pareciam acalmá-lo, tão altos mas ao mesmo tempo parecendo tão frágeis. Pensou que poderia ter-se safado como construtor civil: via-se perfeitamente a andar de Mercedes tipo táxi mas em branco, terço branco que saía nos cereais pendendo hipnoticamento no retrovisor, camisa branca aberta até ao quarto botão, com jeitinho até conseguia que um ou outro pêlo do peito lhe saltasse para fora da camisa. Passaria a ser tratado pelo último nome (algo que sempre sonhou) e dar umas cachaçadas nas costas dos serventis, com piadolas como terceiro andar, a subir na vida não é Jeremias, seguido de riso alarve enrolado em bafo de bagaço de terceira categoria. 
A folha continuava em branco e o disco ia girando como se nada mais se passasse em todo o universo. Chegou à conclusão que tinha fome e que não podia escrever de barriga vazia. Rapidamente percebeu a ironia da coisa e riu-se um bocado. Foi quando pegou no telefone para sair e ir comprar qualquer coisa que reparou finalmente que tinha dez chamadas não atendidas da Bruxa e uma mensagem de voz. Ouviu a mensagem, empalideceu, deixou o cursor a piscar e saiu a caminho do hospital.

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