13 de maio de 2014

Música fria

Há um personagem com quem me cruzo todos os dias quando vou passear o cão, quando saio de carro, muitas vezes quando chego ao fim da tarde, por vezes quando passeio o Link à hora de almoço, às sete da manhã lá anda ele pela rua, parece espantado com alguma coisa, tem aquele andar de quem não espera nada de bom, cigarro meio fumado, chaves ao pescoço presos numa fita vermelha, sapatos de vela de quem anda mais do que a sua conta, rebentados em todos os lados. Apanho o por vezes quando está a sair de uma moradia perto de minha casa, fecha o portão enquanto se despede do cão, outras vezes está a sair de uma quinta ao fundo da rua, perto do parque, diversas vezes está na paragem do autocarro a conversar com quem lá está, claro que depois o autocarro passa mas ele fica, também já o vi a sair de uma moradia perto dessa paragem. O cigarro, sempre meio fumado: vejo o todos os dias e nunca o vi acender um cigarro ou apagar um cigarro, dá uma passa, puxa o cabelo branco para trás, segura o cigarro nos dedos, volta a dar uma passa mas o cigarro parece ficar sempre na mesma. 
Moro num sítio tranquilo, consigo imaginar facilmente o que seria esta zona há vinte anos atrás, antes da construção destas urbanizações: mesmo ao lado do meu prédio há uma pequena praça ladeada por ruas empedradas, estreitas, com um chafariz, há uma sociedade recreativa, o planeamento urbanístico era inexistente e as vivendas e ruas mal planeadas multiplicam-se por aí fora, tão típico do concelho de Cascais. Seria um sítio ainda mais silencioso (ainda hoje, por vezes, se ouvem os sinos das ovelhas), com apenas uma estrada, o mar ao fundo a servir de moldura, a serra nas costas a servir de encosto. Nota-se perfeitamente quem são os habitantes desse tempo: conhecem-se, cumprimentam-se, frequentam a sociedade recreativa, parecem amigos, afinal de contas passam a electricidade das casas de uns para os outros e partilham paredes enviesadas para anexos seguramente clandestinos. Como este gajo do cigarro há outros: há o gajo que está sempre a pintar as grades da casa, há o que trata da sociedade recreativa, há a mulher que lava as escadas e que sabe tudo de toda a gente (já a ouvi discutir com um vizinho os prós e contras de um homem hoje em dia ter namorada), há os reformados das moradias com piscina e cães de grande porte, tudo gente com perfil para ir falar à TVI em caso de desgraça. 
É uma fauna curiosa que por aqui anda. Não posso falar muito: aposto que para eles sou o gajo maluco que passeia o cão, diversas vezes ao dia, faça chuva ou sol, vento ou muito vento (aqui não há outra hipótese). Podia ser pior. 

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