24 de abril de 2013

O fogo e o ruído surdo

Esqueci-me de escolher um livro para a viagem de comboio nocturna, depois de um dia esgotante a última coisa que eu precisava era de fazer a viagem para casa, que a estas horas ainda demora trinta minutos, na companhia dos meus pensamentos, então decidi escrever no caderno que uso para as minhas reuniões, nos phones, mais no coração do que nos ouvidos, toca o concerto do sábado passado, soube-me tão bem, até o Lição de Voo nº1, opus maldita, outrora espalhada nas paredes do meu quarto, é sempre bom espetarmos o nosso sofrimento na parede para outros o verem, é fofinho e resulta melhor do que gritá-lo aos ouvidos de alguém, até o Lição de Voo me tocou da maneira certa, quase todo ouvidos e nada coração, a senhora acalorada ao meu lado não suspeitava de nada do que ia em mim e do quanto contribuiu para que, no fundo, já nada fosse, ainda assim há coisas que gritadas nos fazem sentir vivos, na pressa de viver o corpo quente, eu queria tanto parar aqui, ainda só vou em Belém e há muito para escrever, não tivesse eu a caligrafia assustadoramente ilegível e isto daria um post fac-similado à maneira, as pessoas estão a ver-me escrever e parecem desconfiadas, é compreensível, há um senhor que olha para mim como se eu fosse o gajo do seven que está a escrever umas cenas psycho no seu caderninho e que, mais dia, menos dia, vai cortar alguém às postas e guardar na arca frigorífica, eles olham e eu escrevo e chego à triste conclusão que eu estou mais fadado para ler do que escrever, escrever é uma tortura, um dia, em dois mil e oito, obriguei-me a escrever um livro de contos em duas semanas, consegui, já não escrevia há muito, algumas pessoas chateavam-me por causa disso, faz lá os truques com as letras, maravilha-nos, isto pessoas pouco ou nada entendedoras das letras em geral, sentia-me como se pedissem ao Busquets para impressionar umas crianças dando uns toques na bola, isto quando há Messis por aí é pouco razoável, eu tinha pensado numa analogia com o Messi e pessoas com problemas de locomoção, mas é tarde para coisas de mau tom, voltando aos contos, não escrevi desde então, pelo menos nada que se lesse, umas das coisas que mais me incomodava a escrever era que as pessoas que me liam tentavam tirar conclusões ou vislumbrar sinais, o que, para quem tinha uma obsessão com cenários de fim de relação, era maravilhoso, que obsessão apropriada, pensam vocês, a ironia e eu somos assim, aqui façam o gesto de esfregar os indicadores um no outro, eu no fundo até gostava de escrever mas não consigo, ah, mas tens um blog, pois, pois tenho, e só eu sei as vezes em que eu penso que isto já deu o que tinha a dar, que já serviu o seu propósito, mas, tão certo como o Benfica ser o maior clube do mundo, se eu apagasse isto ia surgir em mim uma irreprimível e inocultável vontade de fazer postzinhos que ninguém vai ler, portanto, para já, continua, apesar de tudo,  eu no fundo, no fundo, até gostava de escrever, mas eu a escrever sou como aquele tipo de barulho que se ouve quando estamos sozinhos em casa e, vai-se a ver, não era nada, sou cada vez menos fogo, apenas ruído surdo.

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