9 de novembro de 2012

Koi no yokan

Faz hoje dois anos que me sentei pela primeira vez neste escritório, curiosamente numa secretária ali ao lado, como gerente desta loja, lembro-me de um dia me ter sentado nessa mesma secretária para tratar de uns assuntos da então minha pequena loja e do gerente da altura e meu superior ter olhado para mim, sorrido abertamente, e dito ficas bem aí, nem brinque com isso, disse eu, meio assustado, coração a bater demasiado depressa, parecia algo inatingível na altura, eu, o miúdo que lia umas coisas e brincava aos livros, ser gerente de algo tão emblemático, mas o raio da vida dá voltas que não lembram a ninguém e, muito graças a ele, uma dívida que nunca se pagará por inteiro, dois anos e poucos meses depois, estava eu recém-divorciado e a entrar por aquela porta como gerente, estava um dia de sol, fui beber um café à Benard, diz que é tradição, curiosamente na minha cabeça imagino-me a entrar, abrir o casaco e tirar o cachecol, mas isto é a minha cabeça a brincar com as memórias, estava um dia de sol, disso lembro-me bem, desci aquele bocadinho da rua e o meu coração empurrava-me para a frente, não era a cabeça, não era o estatuto, era o coração, pensei na minha avó e no orgulho que ela teria, entrei e os livreiros muito sérios, alguns já conhecia de noites mal dormidas a montar lojas e feiras e outros devaneios similares, outros via-os pela primeira vez, já tinha ouvido falar de uns e outros, bem e mal, o que vale é que não emprenho pelos ouvidos, atravessei aquelas salas, fui conhecendo os cantos que não conhecia da casa, recebi um molho de chaves digno de um guarda-nocturno de uma vila obscura do interior, cheio de chaves enferrujadas e de peso descomunal, conheci arrecadações que se escondem atrás das estantes, portas, portinholas, terraço, locais ermos e abandonados, ligações escondidas, um elevador que não funciona na cozinha, frase que só por si dava um post gigante, porque é o que se espera de uma livraria, um elevador na cozinha, e depois um pó de tempos imemoriais, que forma nuvens em forma de cogumelo quando algum livro cai na carpete, e o cheiro, das melhores coisas que há é voltar de férias e ter perdido um bocado a habituação do cheiro dos livros, e os livreiros, odeio clichés, mas, sem eles não estaria aqui, não teria conseguido tanto nem tão bem, todas as alarvidades que dizem quando vão fumar, o ar de desespero que fazem quando digo que, pela terceira vez na mesma semana, temos de montar ou desmontar uma sala para um lançamento, as pequenas vitórias que vou partilhando com eles, profissionais ou não, nunca sonhei que fosse assim, quando entrei, quando passei pela primeira vez na livraria a tentar absorver tudo, os sentidos inundados, é agora, é hoje, foi ontem, foi há dois anos, e hoje, tanto se passou, houve gargalhadas, lágrimas, discussões, abraços sentidos, noites longas, manhãs destrutivas, toquei o céu e desci aos infernos no espaço de vinte e quatro horas, tive problemas pessoais e profissionais, às vezes misturados, conheci autores, editores, comerciais, relações públicas, directores de comunicação, mais livreiros, jornalistas, só me faltou falar para o canal dois, corri as televisões todas e algumas rádios, até a tv record, abraço para o povo irmão e tal, associated press, li, li muito, li muito bem, e hoje, dois anos depois, ainda sinto qualquer coisa ao entrar na livraria e tocar nas estantes, ao arrumar algum livro perdido, ao ajudar alguma pessoa a ter algo que procura, isto está difícil, não parece que melhore rapidamente mas nós, aqui, vamo-nos aguentando, temos toda a história atrás de nós, quase três séculos e, eu, agora, sou uma infima parte dela, mas ela, ela é uma parte gigante de mim.